A FINALIDADE DO PROCESSO

Gelson Amaro de Souza

Gelson Amaro de Souza. Doutor em Direito pela PUC/SP, Professor por concurso dos cursos de graduação e mestrado da UENP - Universidade Estadual do Norte do Paraná (Campus de Jacarezinho-PR), ex-Diretor e Professor da Faculdade de Direito de Presidente Prudente-SP – FIAET, da Faculdade de Direito de Adamantina – FAI, Professor convidado em Cursos de Pós-Graduação como, ITE-Bauru, FADAP- Tupã, AEMS-Três Lagoas-MS, FIO-Ourinhos, ESUD de Cuiabá-MT, ESA-OAB-SP, Procurador do Estado de São Paulo (aposentado) e Advogado em Presidente Prudente-SP. Site: www.gelsonamaro.com e e-mail advgelson@yahoo.com.br

Resumo: O que se pretende com o presente estudo é estimular uma reflexão sobre a finalidade do processo. Sabe-se que para muitos o processo não tem finalidade própria, servindo, tão-somente para proporcionar o acesso à finalidade do direito. É de preocupar com essa afirmação, pois, se o processo não tem mesmo finalidade própria, não há razão de existir. Pensa-se que o processo é dotado de finalidade própria, até porque, não fosse assim, certamente faltaria interesse de agir através do processo. O processo é um mal necessário que existe para forçar o respeito e o cumprimento ao direito material subjetivo das partes. O processo é uma necessidade. Sendo assim, ele tem a finalidade de suprir esta necessidade, quando ela se apresenta em razão do desrespeito ao direito material. 

Palavras chaves: Processo. Finalidade. Realização do direito.

 

THE FINALITY OF THE PROCEDURE

Abstract: This paper aims to stimulate a reflection of the purpose of the procedure. For many people, the procedure itself has no purpose, serving merely to provide access to the right. This statement is troubling, because, if the procedure does not have a finality, there's no reason to exist. That's why the procedure must have its own purpose, which its absence equals to absence of interest to act. The procedure is a necessary evil that exists to secure the respect and comply of the material right. The procedure is a necessity. Therefore, this need presents itself when the material right is disrespected. 

Key Words: Procedure. Finality. Concretization of the right.

Sumário

Introdução

1. Processo

2. A finalidade do processo

3. Objeto e objetivo do processo 

4. Finalidade ou objetivo do processo

5. Processo e direito material

6. Acesso à Justiça

     6.1. Diferença entre acesso à justiça e acesso ao processo

     6.2. Acesso ao processo e impedimento de acesso à justiça

      6.3. Princípio da prevalência do direito material

      6.4.Restrição ao acesso à justiça

7. Processo efetivo

8. A extinção do processo sem atingir a sua finalidade

Referências

Introdução

Desde que Aristóteles, lançou a sua célebre e perene lição, afirmando que o homem é um animal social, não se pode mais descuidar da existência do direito em qualquer aglomerado humano, vez que, onde há sociedade, há direito. Não se pode admitir a existência de sociedade sem direito[1]. É o princípio da “Ubi societas ibi jus”.

A razão desse binômio, sociedade e direito, está voltada às condições de vida em conjunto, as quais são reguladas pelo direito, orientadas, guiadas e inspiradas nas necessidades sociais. O direito é o termômetro controlador do comportamento social, regrando-o, regulando-o de acordo com cada sociedade. Por qualquer ângulo ou forma que se queira ver o direito, a sua finalidade é sempre uma: a de controlar o comportamento em sociedade.

Saber o que é o direito ou o que venha a ser o direito é um grande desafio aos estudiosos. Sabedor disso, GUASP DELGADO, dedicou extensa obra ao estudo do direito, e inicia-a com a pergunta: “Que és Derecho?” Para ele mesmo responder: “Derecho es el conjunto de relaciones entre os hombres que uma cierta sociedad estabelece como necessárias”.[2]

Com muita razão o mesmo autor, afirma mais tarde que a finalidade do direito não se confunde com o seu conteúdo, ao dizer com muita perspicácia: “el contenido del derecho es algo que forma parte interna del mismo: los fines son algo que se situa fuera de el.”[3]

Em verdade, o conteúdo do direito está mais relacionado à causa, apenas os seus efeitos é que são voltados ao seu fim. No dizer de IHERING, “a causa pertence ao passado: a finalidade, ao futuro”[4]. Em outras palavras, podemos dizer que a causa do direito são os acontecimentos sociais inspiradores do arcabouço jurídico, que se nefastos, o direito procura evitá-los, e se benignos, o direito procura impô-los. Essa proibição ou obrigação contida no direito, visa um fim que é o comportamento futuro da sociedade. Mas como causa que deu origem ao direito, às vezes, a simples elevação à categoria de direito, não impede que alguns componentes da sociedade, ainda atuam de acordo com a causa, desprezando a finalidade do direito. Isto é, não observam o seu conteúdo, não cumprem as suas determinações e, com isso, se contrapõe à sua finalidade que é a paz e a segurança das relações dentro da comunidade.

De nada adiantaria à sociedade eleger e estabelecer o seu próprio e necessário direito, sem que houvesse meio ou medida para exigir o seu cumprimento[5]. Assim, é que, a seguir o direito material, aquele que dita as regras que devem ser seguidas por todos, criou-se um direito prático e atuante, para restabelecer o direito violado ou desrespeitado e que passou a chamar-se, direito processual. O primeiro voltado ao futuro, com a finalidade de guiar, dirigir, ditar e indicar o comportamento a ser seguido pela sociedade. O segundo voltado ao passado, visando mais, restabelecer o direito violado ou não cumprido, para que as coisas voltem ao “status quo”. Ainda que se possa pensar em processo como medida preventiva para evitar prejuízo, tais como as tutelas inibitórias, mesmo assim, ele se destina ao passado visto que para haver interesse jurídico para tais medidas é necessária a demonstração de anterior situação fática ensejadora do risco. Até mesmo, para os casos de execução em que tal procedimento visa à realização de atos executivos futuros, a obrigação a ser executada se refere ao passado.

Com a inventiva do direito material, necessariamente, haveria de vir o direito processual, pois sem este, o primeiro perderia o sentido, visto que, descumprido ou violado, não teria como restabelecê-lo.

O direito processual nasceu como alternativa para restabelecer o direito material violado, num primeiro passo, e mais tarde, com a evolução passou a ser útil em casos esporádicos até de meio preventivo para evitar a violação deste, como hoje se apresenta o processo cautelar.

Apesar de toda engenhosidade jurídico-social, a simples criação do direito processual, ainda não seria suficiente para atingir os fins expostos. Agregada e inerente a este, criou-se a “ação” e em conseqüência o “direito de ação”. Em outra obra, falou-se, que a ação e o direito de ação não se confundem. A primeira, corresponde à real atuação enquanto que a segunda, é um direito abstrato colocado à disposição do interessado para utilizar-se da primeira.[6]

A criação do direito de ação, de nada adiantaria se inexistisse a ação propriamente dita. Assim, é que, a processualística moderna, instituiu-a como sustentáculo do direito processual, e como constitucional (art. 5º XXXV, da CF). Sem o direito processual, o direito material ficava ao relento sem o seu sustentáculo. Ação propriamente dita se assegura no direito de ação, este assegurado até mesmo a nível constitucional e sujeito às freqüentes violações. O direito processual sem o direito de ação, ficaria de pés atados não passando de mero expectador das violações ocorrentes no direito material. Também a existência do direito de ação, sem a possibilidade de exercício da “ação propriamente dita”, tudo estaria perdido, pois esta é um dos meios para atingir o fim  que é a proteção do direito. IHERING disse muito bem:  “A própria ação jamais é fim, mas apenas meio para a consecução de um fim”.[7]

A ação é o elemento propulsor de todo o arcabouço processual, para garantir preventivamente o cumprimento do direito material ou para restabelecimento deste depois de descumprido e a ação somente poderá ser conduzida por meio do processo. O processo não é um bem em si mesmo, mas, é um mal necessário, que somente deve ser utilizado para evitar o descumprimento do direito material[8].

 

2. A finalidade do processo

É comum dizer-se que o processo não tem um fim em si mesmo[9], senão atuar como instrumento para a realização do direito material. Diz-se também que o processo é o instrumento para por fim ao litígio e proporcionar a paz social. Solucionar o litígio e efetivar o direito material é a função e finalidade do processo. Diz MONTENEGRO FILHO[10] que essa solução do litígio só é possível através do processo. Também FIDELIS[11] reconhece que o processo tem sim uma finalidade e esta finalidade é solucionar a lide e aplicar o direito material.

O processo tem também por finalidade colocar em atividade a função jurisdicional, através do qual se obtem a solução da lide e a efetivação do direito material, para a consecução da ordem jurídica justa e garantir o efetivo acesso à justiça.

Tem ainda, o processo, a finalidade de conduzir ou levar ao judiciário as pretensões das partes, sem o qual o juiz não atua, visto que, não age de oficio. Mas, também não é só levar ao judiciário a demanda do jurisdicionado. Mais que isso, sua finalidade é proporcionar a ordem jurídica justa, assegurando àquele que tem direito, tudo que efetivamente merece e faz jus em face do direito material.

O processo é o instituto propulsor do acesso à justiça e, esta é a sua principal finalidade. Somente um processo justo pode proporcionar a ordem jurídica justa e o efetivo acesso à justiça. Para CHIOVENDA, a finalidade do processo é a tutela do direito[12]. Já para VELLOSO[13] é a paz social. Enquanto que PONTES DE MIRANDA[14], afirma que a finalidade do processo é a realização ou efetivação do direito material, no que é seguido GRINOVER, para quem a finalidade do processo é a atuação do direito objetivo[15].

 

3. Objeto e Objetivo do processo 

Dúvida existe, se o objeto do processo é a lide ou é a prestação jurisdicional. A final o processo visa à prestação jurisdicional, mas somente se inicia se houver lide. É a lide o objeto do processo? Ou o objeto do processo é a composição ou solução da lide?

Neste ponto, a doutrina tem vacilado e os pontos de vista são divergentes. Parece melhor uma separação entre objeto e objetivo do processo. Pensa-se que o objeto do processo é a lide, pois, sem esta, inexiste o processo, como já escrevemos alhures[16]. Todavia, o objetivo do processo é a composição ou solução da lide. O objeto é aquilo que dá causa e neste ponto a causa do processo é a lide. Sem lide não há processo: pode haver somente procedimento. O objetivo é o fim visado e neste particular é a solução do litígio com a efetiva prestação jurisdicional.

Preferimos dizer que o objeto que dá causa ao processo é a lide que o antecede e o objetivo do processo é a prestação jurisdicional com a pronta solução do conflito, aplicando a norma de direito material e realizando o direito subjetivo. Pode-se dizer ainda que o objetivo do processo é proporcionar o acesso à Justiça, realizando a ordem jurídica justa, solucionando a lide, pondo fim às controversas e realizando ou efetivando do direito material. 

A lide é a causa e o objeto do processo – é anterior ao processo. A parte interessada ao buscar a via judicial já deve descrever na sua petição inicial qual a lide (arts. 128, 282, III e 801, III, do CPC). É exigência da lei processual, que ao propor a ação o autor já descreva a lide com clareza, sendo que do contrário a petição será considerada inepta e indeferida a continuidade do processo. A solução da lide é o objetivo e finalidade do processo. Esta é a nosso ver, a diferença entre objeto e objetivo, e sob o ponto de vista prático a forma mais simples de explicar os dois fenômenos que são diferentes, mas, que vem sendo inadequadamente explicados e por isso confundidos. 

 

4. Finalidade ou objetivo do processo 

Pelo que foi visto, a finalidade do processo civil é compor a lide (finalidade imediata) e proteger o direito material ameaçado ou restaurá-lo se violado (finalidade mediata).

Todavia, a maior finalidade do direito processual é satisfazer o interesse público e realizar o direito objetivo, seja restabelecendo-o ou protegendo-o, mas de uma forma ou de outra, o seu fim é dar segurança às relações jurídico-sociais, proporcionando, com isso, a paz e tranqüilidade no convívio social. Não se pode negar que a sua finalidade é compor a lide, mas não com as suas vistas voltadas somente para os litigantes, pois, o seu alcance é maior, visando dar garantia e confiabilidade a toda sociedade.

Assim, como o direito material tem por fim ditar as normas de conduta para garantir a paz social, o direito processual tem por finalidade assegurar o cumprimento dessas mesmas normas. A finalidade de um ramo (direito material) é ditar as regras, enquanto que a finalidade do outro (direito processual) é garantir a obediência dessas mesmas regras.

 

5. Processo e direito material

Denota-se que o processo é o meio para se obter o acesso à justiça e solucionar a lide com a aplicação do direito material. Todo processo tem por objetivo a aplicação do direito material e sempre conduz questão ou pretensão de direito material para ser solucionada. Não existe processo somente para discutir questão ou pretensão de ordem processual[17]. O direito material somente será julgado se levado ao Judiciário através do processo e o juiz fica limitado a julgar somente aquilo que foi pedido. Sem o processo a jurisdição não atua, por isso, uma das finalidades do processo é provocar a atuação da jurisdição[18].

GALENO LACERDA, com a sua acuidade de sempre, deixou claro que não se pode pensar em processo sem pensar em direito material, visto que todo processo está a serviço de direito material. São suas as seguintes palavras: “Processo não se compreende, separadamente do direito material. O processo é um instrumento pelo qual se realiza essa obra maravilhosa que é a justiça em concreto”[19].

Até mesmo para aqueles casos em que para muitos só existe questão ou pretensão processual, mesmo assim sempre haverá de existir uma pretensão de direito material, muito embora possa parecer diferente. É o que acontece com a ação rescisória, que para muitos não se discute questão ou pretensão material, mas, tão somente processual. Ledo engano. A matéria que dá ensejo à ação rescisória tem natureza de direito material ou substancial à rescisão do julgado objeto do processo. Da mesma forma que a ação anulatória conduz pedido de direito material à anulação do ato jurídico, a ação rescisória porta pedido de direito material à rescisão. O direito à rescisão do julgado é direito substancial ou material e não simplesmente direito processual, muito embora a norma que a autoriza esteja contida em legislação processual[20].

A mesma situação se apresenta para o caso do processo cautelar. Para muitos o processo cautelar somente contem matéria processual. Também neste pensamento, reside sério engano. A questão levada pelo processo cautelar é de natureza de direito material consubstanciado no direito material de cautela. O direito de cautela é direito material ou substantivo. É o direito de afastar o perigo, que pode ser entendido como direito à segurança com a natureza de direito material ou substantivo.

Neste passo SHIMURA, reconhece: “a sentença de procedência na ação cautelar reconhece a existência de uma pretensão à segurança (...) inevitável que se reconheça, à luz do Texto Magno (art. 5°, XXXV), um direito substancial à cautela.[21]

No mesmo sentido proclamou NERY JUNIOR, ao dizer: “Vejo na ação cautelar realmente autonomia e vejo também um direito material à cautela, um direito substancial de cautela, em oposição à tese de alguns processualistas, que crêem não tutelar o processo direito algum”[22].

Como processo que é, o cautelar, também se inicia com petição inicial (art. 282, CPC) e para preenchimento dos requisitos da petição inicial o autor necessita de indicar qual é o pedido (art. 282, IV, CPC). Sem a indicação do pedido a petição inicial será inepta (art. 295, I, parágrafo único, I, CPC). Por se tratar de processo, necessariamente deve conter um pedido de direito material e esse pedido genericamente considerado será o pedido de segurança.

Hoje já não mais se pode negar a existência de mérito no processo cautelar[23]. Em verdade este mérito do processo cautelar está no direito substancial de cautela. Quando reconhecido o direito à cautelar é porque estar-se-á reconhecendo o direito substancial de cautela. Reconhecendo o direito à cautela ou negando a existência desse direito no caso concreto, estar-se-á julgando o direito material, que constitui o mérito do processo cautelar.

 

6. Acesso à Justiça

A Constituição da República garante o acesso à justiça (art. 5º, XXXV) a todas às pessoas, sejam brasileiras ou estrangeiras, maiores ou menores, capazes ou incapazes, ricos ou pobres, sem distinção e sem imposição de condições ou requisitos[24].

Apesar de a Constituição Federal assegurar o direito de acesso à justiça, sem condições e requisitos, as pessoas somente poderão se utilizar deste direito através de um procedimento ou de um processo regularmente instaurado. Desta forma, o processo e o procedimento se apresentam como meios de proporcionarem o acesso à justiça, bem como, as únicas formas de se postular algo junto ao Judiciário. Proporcionar o acesso à justiça é uma das finalidades do processo.

Se entre as finalidades do processo estão as de proteger e realizar o direito material, com vistas voltadas ao acesso à ordem jurídica justa, no sentido de obter a paz social. Não se pode imaginar um processo que possa prejudicar o jurisdicionado. Se o processo não pode criar direito[25] em favor de uma das partes, também não pode retirar o direito que elas têm. O processo que tem como uma de suas finalidades proteger o direito material, não pode destruí-lo em prejuízo do jurisdicionado[26]. Não pode o processo afirmar a existência ou a inexistência do direito sem que exista prova. Não é porque o processo tem por finalidade por fim à lide e proporcionar a paz social, que a composição do litígio será conseguida a qualquer custo e em prejuízo de uma das partes[27]. Bom seria se todas as pessoas cumprissem suas obrigações, pois, assim desnecessário seria o processo. Por isso é que se diz que o processo é um mal necessário, porque atua como remédio para afastar o vício social do descumprimento do direito material e impor o cumprimento ou efetivação do direito material da parte[28].

 

6.1. Diferença entre acesso à justiça e acesso ao processo

O simples acesso ao processo não corresponde acesso à justiça. Como já se falou alhures[29], o acesso à justiça se dá quando o direito da parte é efetivado e, isto pode se dar até mesmo voluntariamente sem processo. Mas, o simples processo não quer dizer acesso à justiça. Ao contrário, o início do processo representa uma situação de desrespeito ao direito do autor, pois, se assim não fosse, nem precisaria do processo. No entanto, é a porta que se abre como primeira providência ou primeiro passo em busca da proteção ou efetivação do direito material e, somente, quando isto se dá é que se pode falar em acesso à justiça. Desta forma, o verdadeiro acesso à justiça somente se dá ao final do processo quando o direito é protegido ou realizado, momento em que o processo deixa de ter razão para prosseguir – é a perda do objeto do processo. Enquanto existir objeto para o processo é porque a justiça não foi feita e ainda não houve acesso à justiça.

 

6.2. Acesso ao processo e impedimento de acesso à justiça

Pode parecer estranha esta afirmação. Mas isso efetivamente acontece, porque até hoje a finalidade do processo não foi ainda bem compreendida. De um lado, tem-se a norma imperativa da Constituição da República que em seu art. 5º, XXXV, determina que não se pode excluir da apreciação do Judiciário qualquer pedido sob a afirmação de ameaça ou de violação ao direito, ainda assim, existem normas infraconstitucionais impondo essa exclusão, como o faz o art. 267, do CPC, ao determinar a extinção do processo sem julgamento do mérito, o que implica em não apreciação do pedido. De outro lado, por vezes ocorre a precipitação na apreciação do pedido sem a presença de prova, declarando-se a improcedência da ação por falta de prova, dando a falsa aparência de julgamento de mérito o que tem impedido a renovação da ação e, via de conseqüência, impede o acesso à justiça mesmo quando a parte conseguir prova posteriormente.

Se a parte não produziu prova de seu direito, isto não pode implicar em julgamento de mérito de improcedência do pedido, pois, se não há prova a indicar a existência do direito, também não há como afirmar a sua inexistência. Disso resulta em falso julgamento de mérito e que tem impedido a renovação da ação, impossibilitando a parte de renovar a ação e, com isso, obter o acesso à justiça[30]. Todo direito nasce do fato e se não há prova da existência ou inexistência de determinado fato, não pode haver julgamento de mérito[31]. A prova do fato é que permite ao juiz formar a sua convicção. Sem prova não pode haver convicção e nem julgamento de mérito[32].

Quando a parte se apresenta em juízo fazendo um determinado pedido, cabe ao judiciário dizer se este tem ou não direito ao que pede diante das provas conclusivas. Caso inexiste prova conclusiva não se pode afirmar pela existência ou inexistência de direito a tal pedido. O velho costume de julgar o pedido improcedente por falta de prova e ainda dar a este julgado a conotação de julgamento de mérito a ponto de impedir a repropositura da ação, tornando definitiva a inviabilidade ao acesso à justiça, é injustiça que não pode ser albergada por qualquer legislação. Isto representa, tirar direito de quem tem e dar a quem não tem, agravando-se a situação daquele que se socorreu do processo, servindo o judiciário à iniqüidade e a desigualdade[33].

Com o julgamento do pedido improcedente por falta de prova, fica o autor impedido de repropor a mesma ação, arruinando a sua citação, saindo o autor em situação pior do que entrou, o que o bom senso não pode aceitar. O processo tem como finalidade proteger o direito material[34] e não extinguir o direito para agravar ainda mais a situação do autor que recorre ao judiciário. No entanto, a equivocada interpretação da lei processual extremamente formalista impede que se de solução melhor, que seria a extinção do processo sem julgamento de mérito, pois, assim, melhor atenderia a lógica jurídica e evitaria considerar coisa julgada aquilo se deixou de julgar por falta de prova.

Lamentavelmente quando o juiz não encontra nos autos prova que assegure o direito ao autor, apressadamente julga o pedido improcedente afirmando que o autor não tem direito. Ora, se não encontrou prova para afirmar a existência do direito do autor, precisa verificar se existe, ao contrário, prova de que o autor não tem direito, para assim decidir. O que não pode, é na falta de prova decidir pela improcedência do pedido, pois, se falta prova para afirmar o direito do autor, também falta prova para dizer que o autor não tem direito.

Essa situação é perceptível em casos de pessoas idosas que trabalharam por toda a vida sem documentação. Ao ir ao Judiciário postulando a contagem de tempo ou mesmo a aposentadoria sem a apresentação de prova documental, este julga o pedido improcedente por falta de prova. Isto, impede a renovação da ação pelo idoso, ainda que obtenha documentos comprobatórios posteriormente, em face da mal interpretação da coisa julgada, pela qual não mais poderá postular a aposentadoria desejada e à qual tem direito. Em outros termos, o processo que haveria de proteger o direito material do jurisdicionado, acaba por extinguir indiretamente esse direito, laborando-se na contra mão de direção da finalidade processual. 

Desta forma atenta contra o texto constitucional[35], por impedir a repropositura da ação, dizer-se que está apreciando e decidindo o mérito, mas proclamando a improcedência do pedido por falta de prova. A improcedência do pedido por falta de prova que sempre foi reconhecida como julgamento de mérito, ostenta a maior incoerência jurídica, que o bom senso não pode estimular. 

Sem prova não pode o juiz apreciar o pedido e se este corresponde ao mérito, logo não pode ser julgado[36]. Cabe ao autor diligenciar a prova dos atos constitutivo do direito que alega, e se não desincumbe desse encargo no prazo fixado pelo juiz, implicará em abandono do processo que deve ser extinto sem julgamento do mérito na forma do art. 267, III, do CPC, por desinteresse do autor. Neste caso não há negativa de prestação jurisdicional, pura e simples, o que há é abandono do processo pelo autor o que impossibilita o julgamento de mérito e, por via de conseqüência, impede o acesso à justiça naquele processo, mas não impede que em outro possa buscar o acesso à justiça. O que não pode é o juiz, mesmo sem a prova necessária decidir pela improcedência do pedido por falta de prova e atribuir a este provimento a força de julgamento de mérito, o que implica em impedir nova postulação pela parte, em face da falsa coisa julgada[37].

O mérito da causa (pedido) somente pode ser apreciado e julgado mediante a produção de prova. Neste sentido já pronunciaram LAZARI[38], CARNEIRO JUNIOR[39] e SAVARIS[40]. Até mesmo o Superior Tribunal de Justiça, já decidiu no sentido que, neste caso, não há prejuízo à repropositura da ação, o que implica a inexistência de julgamento de mérito[41].

O julgamento pela improcedência do pedido por falta de prova jamais poderá ser considerado como julgamento de mérito, porque se falta prova para afirmar a existência do direito, também a faltará para afirmar inexistência do direito a ponto de impedir nova apresentação da demanda. O processo e o julgamento que não podem criar direito, também não podem retirar o direito de quem o tem[42]. A ação quando julgada improcedente, mantém as partes no status quo sem melhorar e nem piorar a situação das partes. Sentença de improcedência é sentença meramente declaratória, sem criar e sem extinguir direitos.

 

6.3. Principio da prevalência de direito material

O direito material deve sempre prevalecer sobre o direito processual. Alguns princípios não aparecem expressos em texto de lei e nem compêndios doutrinários. Mas, existem e devem ser respeitados. Entres estes, está o princípio da prevalência do direito material. Isto quer dizer que o direito material deve prevalecer sobre o direito processual. Levando-se em conta que o processo tem por finalidade a proteção do direito material, resta implícito que este deve prevalecer sobre aquele.

Se uma das finalidades do processo é a proteção do direito material, logo, ele existe em face do direito material. Existe como instrumento de proteção ao direito material e não se pode sobrepor a este. Assim, processo somente existe para proteção e realização do direito material. Não pode criá-lo[43] e nem destruí-lo[44]. Destruir o direito de um demandante e atribuir ao outro direito de que não tem ou livrá-lo da obrigação, isto não pode se dar através do processo[45]. O processo somente existe para proteger e realizar o direito material e não para extingui-lo[46], pois, o processo não tem força para por fim ao direito material. Por isso não se pode pensar em processo, sem se pensar no direito material. A procedência do pedido quando estabelecida no processo refere-se a um direito já existente. Por isso, não pode ser considerada criadora do direito. Do mesmo modo, a improcedência, quando assim declarada no processo, não pode servir para destruir direito material antes existente. Isto se dá, porque o direito material deve sempre prevalecer sobre o processo e, este não pode destruir o direito material[47].

O direito de acesso à justiça (art. 5º, XXXV, da CF) pressupõe ação com a aplicação da norma de direito material, conferindo à parte o direito a uma apreciação e a um julgamento sobre a existência ou a inexistência do direito pleiteado. O judiciário não pode deixar de apreciar este direito, sob o fundamento de que falta pressuposto processual ou condição da ação, porque a Constituição da República proíbe qualquer exclusão (art. 5º, XXXV). Estes requisitos são de ordem processual e não podem sobrepor ao direito material de acesso à justiça que é direito fundamental da parte autora. Deixar de apreciar a questão de direito material e supervalorizar a norma processual para extinguir o processo sem julgamento do mérito, é negar o acesso à justiça e a efetivação do direito material em prejuízo da parte, em afronta ao direito fundamental de acesso à justiça garantido no art. 5º, XXXV, da CF. A lei material hipotética deve sempre ser aplicada aos casos concretos, para a efetivação do direito e do acesso à justiça[48].

 

6.4. Restrição ao acesso à justiça

Além dos casos de exclusão do acesso à justiça expressamente previstos no art. 267, do CPC, que afirma que o juiz deve extinguir o processo sem julgar o mérito nas situações ali previstas, ainda existem disposições aqui ou acolá estabelecendo a impossibilidade ou impondo dificuldade ao acesso à justiça, por exigências restritivas. 

O nosso legislador ainda não acordou, mantendo-se as restrições ao acesso à justiça, como sempre o fez no passado, não se dando conta de que no mundo moderno não se admite mais processo com tanto formalismo a ponto de prejudicar o direito material. Não se percebeu que o direito material deve prevalecer sobre as formalidades processuais. Até mesmo, o projeto do novo CPC, (Projeto-Lei nº 8.046/2010) não conseguiu se livrar deste incômodo, mantendo-se as mazelas do passado[49] com inúmeras restrições ao acesso à justiça, em afronta direta ao art. 5º, XXXV da CF. 

A Constituição da República ao estabelecer o direito de acesso à justiça (art. 5º, XXXV) não deu margem a que se pudesse o legislador ordinário impor qualquer condição ou requisito no sentido de dificultar ou impedir este acesso à justiça.

O Código de Processo Civil através de várias normas espraiadas em seu conteúdo, de forma direta ou indireta impede ou dificulta o acesso à justiça. Quando se prevê a não apreciação de recurso por falta de pagamento do preparo recursal (art. 511 e parágrafo segundo), se não está impedindo o acesso à justiça de grau superior, pelo menos, está dificultando tal acesso. 

O mesmo CPC fecha logo de início as portas do acesso à justiça em primeira instância, ao estabelecer que a parte autora deve efetuar o pagamento das custas referentes à propositura da ação com antecedência sob pena de cancelamento da distribuição (art. 257, do CPC). Esta exigência está impondo dificuldade e nos casos de falta de pagamento impossibilidade de se acessar a justiça, em face do cancelamento da distribuição, que nada mais é, do que por fim ao processo antes que ele tenha seguimento para a apreciação do pedido do autor.

A legislação processual trabalhista também prevê, não só o pagamento das custas em primeira instância, mas ressalva que estas serão pagas ao final pelo vencido (art. 789, par. 1º, primeira da CLT), bem como o vetusto preparo recursal (pagamento de custas do recurso) que deverá ser pago no ato da interposição recursal (art. 799, par. 1º, segunda parte da CLT) e, o pior de tudo, exige também um depósito extra (fora às custas), para segurança do juízo (arts, 899, par. 1º e 897, par. 5º, I, da CLT). Trata-se de exigência que dificulta o acesso à justiça, e, por vezes até mesmo o impede, porque a parte às vezes não dispõe de numerários suficientes para pagamento.

A CLT, ainda contempla no artigo 767, que o direito à compensação ou retenção de valores devidos pelo empregado somente poderão ser alegados como defesa, ficando implícita a proibição de propositura de ação neste sentido, o que implica em impedimento de acesso à justiça pelo empregador para obter o que lhe é de direito. Essa norma é inconstitucional[50]. Ainda consagra outra norma de duvidosa constitucionalidade, quando impede que aquele que apresentou reclamação verbal no distribuidor e, depois, não compareceu à vara distribuenda para lavratura do termo, incorrerá na pena de perda, pelo prazo de seis meses, do direito de reclamar perante a Justiça do Trabalho. Essa proibição do cidadão demandar na Justiça do Trabalho está impedindo o acesso à justiça pelo prazo de seis meses. Parece-nos mais um caso de inconstitucionalidade pela exclusão do acesso à justiça. A Constituição da República garante o direito de acesso à justiça sem condicionamento.

Ainda, existem os mais lamentáveis casos de restrição do acesso à justiça que são os casos de exigência de depósito administrativo para defesa ou recurso na via administrativa. Muito embora, não aparece como impedimento de ingresso na via administrativa diretamente, mas, indiretamente acaba por influenciar e restringir o acesso à justiça[51].

A Constituição Federal (art. 5º, XXXV) não fez nenhuma exigência neste sentido e nem autorizou que o legislador ordinário assim o fizesse. Estas exigências são contra a garantia constitucional do acesso à justiça e essas normas não podem ser tidas como constitucionais. Estas normas ao afastarem da apreciação do judiciário o mérito do pedido, sem que o Judiciário diga se a parte tem ou não tem direito ao que se pede, está afastando não só direito de acesso à justiça, mas, está afastando qualquer outro direito que a parte pretende que o Judiciário aprecie. Sem a apreciação do judiciário, nenhum direito será assegurado e inexistirá acesso à justiça[52].